
Mas nem tudo é assim tão simples. Represálias selvagens pondera sobre as limitações dessa perspectiva a partir da análise de três obras nas quais o realismo é atravessado pelo excesso de significação do real que seus autores oferecem ao leitor: Casa sombria, de Dickens; Madame Bovary, de Flaubert; e Os Buddenbrook, de Mann. Segundo Gay, os três andaram mais motivados pelo sentimento de vingança - de onde as "represálias" do título da obra - do que apenas pelo registro procedente de sua observação do mundo. É dessa constatação que emerge a observação de Gay: personagens, cenas do cotidiano, temas e histórias criadas pelos três, nada é menor por conta dessa inspiração "selvagem" nem menos representativo do que a Literatura produziu de melhor, mas tudo é, a um só tempo, elemento de turvagem do real; quase um espelho distorcido no qual os historiadores devem acreditar com reservas. Afinal, "o realismo, como diz o autor, não é a realidade".
No entanto, se não é o decalque da realidade, a Literatura pode atingir "verdades mais elevadas (...) das quais os historiadores, prosaicos escavadores de fatos atormentados por documentos, nunca podem nem sequer se aproximar". Em apoio a essa tese, Peter Gay (que é um dos melhores biógrafos de Freud) lembra que o inconsciente foi descoberto pela ficção antes da psicanálise. A vantagem do ficcionista é a sua "perspicácia" psicológica, instrumento que o historiador não pode usar livremente na sua narrativa. Ainda assim, os romancistas escrevem a história? pergunta o autor. Sim, certamente, na medida em que criam caracteres universais, tipos sociais representativos da realidade que observam - elementos que, ao fim, são as marcas da melhor ficção e... da maior contribuição que podem dar à reconstrução do passado.
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Leia aqui a resenha do livro de Peter Gay feita por Sérgio Telles e publicada no suplemento Sabático, do Estadão (10/07/2010).
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